Quem tem medo dos sindicatos? A redução salarial e a negociação coletiva, uma questão de pacto social

* Rodrigo Carelli e Ana Cláudia Nascimento Gomes

Greve geral, em São Paulo, em 1917

A série dramática The English Game, disponível na Netflix, mostra os primórdios do futebol na Inglaterra dos anos 1870. Entretanto, a parte mais interessante da série não é a precariedade dos esquemas táticos, dos campos e mesmo da técnica futebolística da época, mas sim os conflitos decorrentes das relações de trabalho. O Darwen, além de ser um time de futebol representando uma cidade de mesmo nome, é uma equipe formada por operários de uma fábrica e bancada pelo empresário da usina de algodão. Toda a trama se desenvolve, inclusive a parte relativa ao futebol, em torno do conflito de classes, e, centralmente, das disputas fabris.

Essas querelas se desenvolvem em torno de crises financeiras pelas quais passam as empresas, que decidem, coletivamente, por meio de sua associação patronal, a redução salarial de todos os trabalhadores do setor, sem qualquer negociação com os operários. Inicialmente há uma redução de 5%, e logo se passa a outra de 10% dos salários. Essa redução é exigida pelos bancos como forma de garantia para a concessão de empréstimo às fábricas.

As reduções revoltam os trabalhadores, cujos salários mal davam para a sua sobrevivência, e eles iniciam movimento grevista e posteriormente passam a fazer rebeliões. Avisado do movimento paredista e dos possíveis prejuízos trazidos aos empresários, o presidente da associação patronal afirma que não iria se preocupar: “as barrigas dos trabalhadores estarão vazias antes que os nossos bolsos”. Os trabalhadores da fábrica de Warren encerram o movimento após o empresário aceitar a proposta coletiva dos operários de reduzir os salários em 5% ao invés de 10%, diminuindo, em contrapartida, a jornada dos trabalhadores.

Estamos falando de 1870, já passados assim quase 150 anos, mas ainda se exige sacrifício imediato dos trabalhadores nas crises. Agora mesmo estamos sofrendo uma gigantesca crise sanitária que traz consigo uma depressão mundial. A resposta inicial à pandemia difere largamente entre os países. As respostas seguintes a essa fase, que serão necessárias, ainda estão por serem desenhadas.  A solução inicial e emergencial brasileira foi a redução conjugada de salário e tempo de trabalho, com complementação financeira parcial por parte do governo, o que resulta em queda na remuneração do trabalhador de 6,5% a 57,31% dos salários, resultando em uma derrubada da massa salarial do setor privado em até 27,7%. Para instrumentalizar essa possibilidade, a Medida Provisória nº 936 previu duas hipóteses: a negociada individualmente por trabalhadores e a ajustada coletivamente por meio dos sindicatos.

O Supremo Tribunal Federal foi convocado a decidir a questão na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 6363sobre a conformação constitucional da MP 936/2020, ajuizada pela Rede Sustentabilidade. Esta ADI que já conta com mais de uma dezena de amici curiae admitidos, em sua maioria, para a defesa das considerações aqui colocadas. O relator a quem foi distribuída a ação, Ministro Lewandowski, entendendo que a previsão de acordos individuais para redução salarial atinge diretamente a Constituição, concedeu liminar que conferiu interpretação conforme ao dispositivo legal, submetendo os acordos individuais a uma forma de chancela sindical. De imediato veio a gritaria do governo e dos empresários e seus defensores, no sentido de que a liminar concedida inviabilizaria o enfrentamento do desemprego causado pela desaceleração econômica. O presidente do Supremo Tribunal Federal logo se apressou a colocar a questão em pauta, de maneira urgente. As reportagens indicam uma pressão forte do empresariado e do governo e se silenciam em relação à posição dos trabalhadores. Aliás, é como se os trabalhadores e sua organização coletiva não existissem. Há até aqueles que, como os autoritários geralmente fazem, negam a possibilidade da existência de qualquer conflito coletivo de interesses durante a pandemia. O relator, em sede de embargos de declaração, afirmou que os acordos individuais já estão valendo, só perdendo eficácia se houver convenção ou acordo coletivo, em razão do princípio da norma mais favorável.

Em um momento como o atual, mais do que nunca, devemos nos ater aos princípios. Os princípios não são deixados de lado nem em guerra, quanto mais em um momento em que a sociedade deve se unir para a solução de um grave problema. Pelo contrário, as soluções pelo problema devem necessariamente passar pelos princípios de constituição da sociedade, sob pena de não subsistir o pacto que a une.

Entre os princípios que temos em nossa Constituição está o da negociação coletiva, presente em diversos dispositivos do art. 7º, 8º e 9º. Prevê-se que a solução coletiva negociada é a mais interessante para a solução dos conflitos trabalhistas em nossa comunidade política. Um desses dispositivos, que mais interessa no presente caso, é de uma clareza estelar: Art. 7º, VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.

Ou seja, somente pode-se reduzir o salário por meio de negociação coletiva. Simples assim. As razões são muitas: não há verdadeira negociação individual entre empregador e trabalhador, dada a falta de isonomia na relação, que vicia a autonomia na expressão da vontade. Além disso, há a assimetria informacional entre as partes negociantes do acordo. Quem negar a existência dessas assimetrias ou é cínico ou ignora como se dão as relações de trabalho na vida real, essa em que as pessoas vivem e morrem. Relativa isonomia somente é restabelecida pela negociação via representação de trabalhadores. É assim no Brasil e é assim no mundo, conforme as Convenções 87, 154 e 98, fundamentais da OIT, sendo a primeira vigente no Brasil por ser membro da OIT e a segunda por nós ratificada. Tais convenções, no mínimo (considerando a própria jurisprudência do STF), têm natureza supralegal; e, nessa medida, impõem vinculações aos atos emanados de quaisquer das esferas dos Poderes internos.

Assim, o Direito do Trabalho, que tem como pilar justamente a assimetria entre as partes, não pode conviver com acordos individuais, ainda mais especificamente em relação à redução de salários. Todas as normas anteriores à Constituição foram compreendidas como não recepcionadas pela quase totalidade da doutrina e pela jurisprudência das cortes trabalhistas.

É risível o argumento de que se pode reduzir a jornada e com isso o salário sem atingir a norma. Isso vai contra toda a doutrina trabalhista e o bom senso: estaria na mão do empresário a possibilidade de impor ao trabalhador, sempre a seu bel prazer e conveniência, a jornada e o salário que bem entendesse.

Não foi à toa que começamos este texto com uma história de 1870. O que se pretende, ao fim e ao cabo, é o retorno ao Século XIX, em que o confronto direto entre empregadores e trabalhadores ocorria individualmente e o mais forte vencia até o conflito se tornar aberto. Pretende-se implantar neste momento de pandemia o acordo individual para que se sobreponha sobre a lei e a negociação coletiva. É esse o objetivo, sejamos claros e diretos: o que se pretende é o fim do Direito do Trabalho como o conhecemos e a permanência somente de normas que defendam os interesses dos empresários, como abundam na chamada Reforma Trabalhista de 2017. O exemplo, que não é escondido por ninguém no governo, é a ditadura chilena da década de 1970 que tinha como objetivo – afinal conquistado – destruir a organização sindical naquele país, o que até hoje não se conseguiu restabelecer, deixando um cenário de caos na sociedade.

A decisão liminar de Lewandowski afronta a Constituição, mesmo dando interpretação em que resguarda de certa forma a prevalência da norma coletiva, em tentativa de solução salomônica, porque dá vigência aos acordos individuais em caso de silêncio sindical ou mesmo até que a negociação coletiva renda frutos. Ora, os sindicatos podem não querer negociar redução salarial, por motivos diversos, como por exemplo em setores que realmente não necessitam de qualquer medida de auxílio no presente momento, como o bancário. A letra da Constituição é clara e a Organização Internacional do Trabalho já afirmou e reafirmou que o melhor caminho para o combate à pandemia do Coronavírus é a negociação coletiva via entidades sindicais. É o diálogo social a solução civilizada e democrática que o momento existe.

Coloca-se em defesa da norma de exceção do governo federal que a urgência no combate à pandemia tornaria difícil a busca de sindicatos nesta hora para a realização da negociação coletiva. Ora, mas quem coloca essa justificativa critica a decisão de Lewandowski, que é clara em dizer que no silêncio dos sindicatos prevalece o acordo. Além disso, parece óbvio que os sindicatos não iriam invalidar acordos de pequenas empresas em dificuldade, e sim embarreirar acordos espúrios feitos em aproveitamento da situação. Assim, percebe-se que o interesse vai muito além do que dinamizar a solução na emergência, e sim abrir a brecha da exceção do acordo individual no direito do trabalho.

Nem se venha dizer que as intenções foram as melhores, ou seja, manter os empregos, e que a redução salarial é um mal menor, pois temos sempre que lembrar: a solução escolhida pela Medida Provisória não era a única que poderia ter sido tomada. Países escolheram outras com maior proteção aos trabalhadores, inclusive trazendo proibição temporária de dispensa de trabalhadores e auxílio econômico direto às empresas. A solução urgente brasileira já é criticável do ponto de vista de escolha, colocando fardo sobre os trabalhadores, e a forma escolhida é a pior possível e agride frontalmente nosso pacto constitucional. Até o Banco Mundial, em seu último relatório, propõe que a carga dos ônus trazidos pela pandemia seja distribuída entre governos, bancos e empresas, e não seja colocada no ombro dos trabalhadores.

O argumento da excepcionalidade do “estado de calamidade pública”, como reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6/2020 para efeitos orçamentários; ou, da ocorrência de um “estado de necessidade econômica” também não sustenta, sob qualquer ótica, a eventual constitucionalidade “excepcional” ou “temporária” da Medida Provisória em questão.

A uma, considerando a expressa literalidade do preceito constitucional constante do art. 7º, na medida em que a norma sequer autoriza, inclusive pelas vias regulares da chamada “reserva legal” (lei em sentido formal e material), eventual flexibilização da garantia da “irredutibilidade do salário”. Longe se pudesse cogitar, então, que uma Medida Provisória, despida de controle parlamentar, possa adentrar em lugar que jamais fora reservado à própria lei material; mas, única e exclusivamente, à “contratação coletiva”, pela participação democrática (e, portanto, pelo controle) das entidades sindicais profissionais.

A Constituição reconhece que, em se tratando da subsistência dos trabalhadores, do ganha-pão destes que representa o salário, apenas na pactuação coletiva é legítimo discutir, em verdadeiro plano de igualdade, as condições de eventual redução desse direito pela sua natureza alimentar; e, assim, ainda que haja proporcional redução de jornada (art. 7º, XIII). Não é o tempo de disponibilidade ao empregador que está em causa ao fim e ao cabo (e, por essa ótica, de “liberalização” do trabalhador para outras atividades), mas, sim, a própria capacidade de sustento daqueles que integram a respectiva categoria profissional. E a urgência almejada das soluções consensuais não pode jamais servir de pretexto – seja na esfera do Direito Coletivo do Trabalho, seja em outros ramos do Direito em que o princípio da autocomposição tem prevalência –, num Estado Democrático de Direito, para, pura e simplesmente, aniquilar a participação dos entes envolvidos, forçando o seu silêncio e inércia.

A duas porque, mesmo se reconhecendo a imprevisibilidade da eclosão da presente pandemia há poucos meses, não se há falar em suspensão de direitos individuais ou coletivos, em termos genéricos e apriorísticos, como pretende a dita MP, por “motivos de força maior” ou “pela razão dos fatos”. Ora, os fatos não têm supremacia sobre as disposições constitucionais; mas, sim, o contrário. Há muito deveríamos estar longe da época em que os “fins justificam os meios”.

Aliás, do ponto de vista da dogmática do Direito Constitucional, sabe-se que nem mesmo em situações práticas de recurso ao “sistema constitucional de crises” os direitos fundamentais podem ser colocados à parte pelos poderes da República, ainda que em brevíssimo e temporário momento de “letargia jurídica”. E, quando se alude aqui ao “sistema constitucional de crises”, considerando a Constituição de 1988, estamos a referenciar situações institucionais e sociais potencialmente ainda mais sérias e graves do que a atualmente vivenciada pelos efeitos econômicos do COVID-19 (vide arts. 136 a 141, CR/88); situações estas que sequer foram densificadas por lei (pós 1988): o Estado de Defesa e o Estado de Sítio.

Mesmo na rara hipótese de um Estado de Sítio decretado com amparo no art. 137, inciso I, da Constituição, ainda assim, por mais escolástica que possa ser essa nossa prospecção, apenas para efeitos argumentativos, veja-se, não há nenhuma brecha para afastamento, ainda que precário, da garantia constitucional da “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo” (ou de qualquer outro direito individual ou coletivo constante dos arts. 7º, 8º e 9º; ou ainda, da própria democracia participativa base da concertação social). Basta ler os direitos fundamentais estritamente inseridos nos incisos do art. 139 da Carta.

Em suma, mesmo em situações constitucionais com maior grau de potência restritiva e invasiva na esfera individual e social, não reconhece a Constituição nenhum espaço a soluções arbitrárias ou contra constitucionem. Enfim, “não existe estado de necessidade constitucional fora dos quadrantes da Constituição”.

Estamos, portanto, diante de um direito/garantia/preceito constitucional – o da “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”, frise-se – que não possibilita interpretação autorizativa de validação de acolhimento de lei (em sentido formal, no caso, a MP 936/2020) a substituir o espaço assegurado às entidades sindicais, anulando, dessa forma, a liberdade sindical e o direito de contratação coletiva dessas entidades. São eles, os sindicatos profissionais, em especial, aqueles que têm legitimidade constitucional para debater, resistir e consentir coletivamente qualquer redução de salário que se possa razoavelmente defender em épocas de crises sanitárias e/ou econômicas.

Acompanharemos com olhos atentos o julgamento pelo Plenário da Suprema Corte, que acontecerá nos próximos dias. Esperemos que o STF não se sensibilize por argumentos econômicos ad terrorem, imponha a função contramajoritária dos direitos fundamentais; e, como guardião da Constituição, defenda a plena eficácia normativa do preceito que assegura a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo” como baluarte da liberdade sindical e do direito de negociação coletiva; direito este que é intransferível em termos individuais, sob pena de sua própria desnaturalização, como inerente à autonomia sindical. Em termos populares, torçamos para que o STF não jogue fora “a água da bacia, com criança e tudo” e preserve a nossa Constituição Cidadã!

Se assim não o fizer o STF – e validar fissura para ingresso da reserva legal onde ela foi constitucionalmente impedida de adentrar: na redução de salário dos trabalhadores – poderá estar firmando precedente caótico e alienado dos parâmetros convencionais da OIT e, com isto, alijando ainda mais o Brasil da comunidade internacional, em termos laborais. Acaso seja este o caminho a ser percorrido pela Corte, novos distúrbios coletivos como aqueles do Século XIX poderão a vir eclodir. Afinal, mesmo calada a negociação coletiva, não estará resolvido o conflito em seu âmago, pois o pacto social representado pela Constituição terá sido rompido.

Talvez seja mesmo adequado o momento para assistirmos as séries do Século XIX e os filmes como O Germinal, aproveitando o tempo desse confinamento. O passado tem muito a nos ensinar e não precisamos revivê-lo para sabermos o quanto ele foi dolorido.

*Ana Cláudia Nascimento Gomes – Professora de Direito do Trabalho e de Direito Constitucional da PUC-MG e Procuradora do Trabalho.

*Rodrigo de Lacerda Carelli – Professor de Direito do Trabalho da UFRJ e Procurador do Trabalho

Post Mario de Gomes
Foto: arquivo MGS

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